quarta-feira, 23 de novembro de 2011

(...)

andamos desencontrados do mundo ele que vinha aqui pousar os olhos nas folhas das árvores à beira do lago andamos de cruzamento em cruzamento em busca de um semáforo que cintile no colo da noite e liberte o néctar rubi dos amantes dois minutos no café o tráfego vai-se escoando de encontro à pele o tecido do mar ondula e a barra entra mar adentro rio adentrando-se andamos desencontrados do vento da brisa que fustiga a cara no pousio da palavra a resposta que não vinha como a maré incontida

aqui estamos sem lugar definido braços e pernas indefesos com a montanha ao alcance dos olhos tecendo o pano cru de vida em vida em morte seguindo os passos enormes da espécie somos o homem e a sua sombra dúplice água e longo lodo revestimos o corpo arqueando as ondas cindindo o corpo ao corpo na redondez de ancas braços desenhados na pele e branda madrugada

e por vezes vem o cansaço o grande e fundo cansaço encimado de chumbo no céu e alguns pássaros virão de voo em voo fazer os ninhos na casa de papel e trarão o pequeno restolho abrigando as crias erguendo os bicos ao alto titubeando penugentos os versos primaveris

e quando do fundo da terra emergirem as raízes o odor de húmus do arco da linguagem que se arredonda na mão no girar dos dedos será por fim semeado o poema

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

BARROSO, 2011

Estou de borco, debruçado sobre as palavras, imerso na geografia das montanhas, recolhendo por entre a névoa os fragmentos de lugares, aparentemente, vestígios que deposito, bloco a bloco nestas páginas:

Tourém, Barroso, 2 de Setembro de 1990.

LIMITE

Pátria até que os meus pés
Se magoem no chão.
Até que o coração
Bata descompassado.
Até que eu não entenda
A voz livre do vento
E o silêncio tolhido
Das penedias.
Até que a minha sede
Não reconheça as fontes
Até que seja outro
E para outros
O aceno ancestral dos horizontes.

in Diário, Vol. XVI, Miguel Torga, 1995


TOURÉM

Os olhos do poeta
passavam pelos teus,
graníticas calotes,
onde a exfoliação
do tempo lançou
as raízes incertas na
áspera fundura da terra,
receptáculo em que
o castanheiro derramou
as derradeiras folhas.

O corpo, embora a fundura
pese na paisagem dura,
cavada na distância de
séculos, flutua no límpido
manto das grandes águas.

Paulo da Ponte, Barroso, 15 de Outubro de 2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

DE ROUPÃO EM CASA

Chego a casa,
(descalço os sapatos)
e não ligo o aquecimento
ligo em vez disso
as palavras

e espero que me aqueçam
olho-as até que atinjam
o rubor de flores:
acendo um jardim
completo em casa

e agora, tendo afastado
a geada dos recantos
do quarto, posso até
florir

terça-feira, 8 de novembro de 2011

KB

Olho, olho os ponteiros que se escoam do tempo
e os minutos dentro do braço do mesmo tempo
que abraçam e eu permaneço fazendo as tarefas
quotidianamente, abraçando em frente ao computador

o computador abraça-me e eu, fico somente só
entre a gente, que sai e entra daquelas janelas
digo bom dia, se a janela se abre discreta
sobre a superfície baça da existência do ecrã

e lá estamos reflectidos, movemos a cabeça e
movimentamos o cursor e perdemos toda a
informação dado o erro mal calculado por um bit

um escasso bit de informação foi o necessário
para em movimento rotacional antever o desastre
que se adivinhava mesmo antes de terminar o poema.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

MUSIC FOR A NEW SOCIETY (after Cale)

Saímos já sem que a roupa
formal
nos oprima a respiração,

os pequenos botões
rasgando o peito

saímos sem calendário
de regresso, por onde
os dias não pesem

e com os pés nus
erguemo-nos acima
para além do jugo
dos sapatos.

Um travo acre
o lume do tempo,
rebentando na língua
os cordões com que
a boca dirá.