terça-feira, 6 de novembro de 2012

Manuel Moreira


Penetrei na terra rossa, mãos e pés envoltos na espessura da memória. Primeiro, à superfície, sentia o ar envolvente da montanha, o aroma de alecrins subir pelas mãos até ser inalado, a vertigem da paisagem a entrar nos poros. Já na gruta, a humidade circulando pelas pequenas cavidades, vértebras do tempo antigo. É uma descida ao poço dos homens, aquela que se empreende com o frio no rosto e uma pequena candeia iluminando a fronte. Manuel Moreira continuava na entrada da gruta, guardião do tempo com o vento fixado no rosto, as mãos lentas, enegrecidas pela escassez do trigo e pelo balido das cabras serranas, apascentando baldios. O corpo curvado sobre a haste fina de madeira tornara-se instável, puxando o corpo frágil a curvar-se, lanterna acesa rente ao chão enluarado, desenhos de espuma nos cabelos.

Manuel sempre aí tinha vivido no ventre escuro da serra, desde que penetrara a mina da Bezerra, de onde retirara o minério que alumiaria almas perdidas. Da Bezerra à Corredoira serpenteava a locomotiva ululante na falda nascente de Candeeiros, os fios desenhados no relevo começariam a transportar uma nova luz.
Dos contrafortes de Chão das Pias avistam-se os sulcos do Lena e a imponência do castelo de Porto de Mós, sentado e pensativo sobre o povoado. Era toda uma geografia que se desvendava num texto breve, como este.

*

Tenho um nebulizador, Manuel Moreira, mantenho-o sobre a mesa de cabeceira para memória futura, ao lado do copo com água, candeeiro de pendentes lacrimejantes, papel de rascunho, estojo de canetas. Neste local, inicia-se uma revolução a cada texto hediondo, a cada espera sonolenta. Ritmo e sombra são o propósito.
É daqui que parto todas as noites para longe, muito longe daqui, para longe de mim, e à medida que me afasto, aproximo-me com um arco de luz de orelha a orelha, sobre a voz ciciante. Neste local repouso as palavras agudas e arrumo as linhas por cada espaço livre, ordenadamente, tudo o resto aparece como gelatina desarrumada expandindo a luz em gorgolejos. Enche-se o espaço, aquoso, de uma tinta anilada, a escrita que inicia a sua dança sensual entre duas linhas.
Reparem, o movimento cíclico do aparo entre os dedos, desenhando rebordos negros de fundura. A cabeceira, local onde encosto a arcaria do peito, treme e ferve à medida que o texto avança, entretecido por dedos, a trama é densa e urgente; o dia claro, sucedendo-se a si próprio.
Manuel Moreira está presente mas não vive, apenas jaz entre quatro paredes cartonadas, numa indústria decadente e baça de contornos. Dir-se-ia que se trata da dissipação da linguagem, mas os ícones prevalecem ante a nudez das mãos, emanando dos movimentos fulgentes.


Serra dos Candeeiros, 3 de Novembro de 2012

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Zéfirofolio no carso profundo

Zéfirofolio tem andado afastado da grande política. Há quem diga que anda a preparar-se para a alternância democrática ou lá o que isso quer dizer. Anda a preparar uma vaga de fundo que que nos passe bem acima da cabeça. Mas já ninguém acredita, tanto foi o tempo da ausência que motivou no povo uma forte indiferença. Anda tudo indiferente e com vontade de cagar, com uma forte vontade de cagar nisso nos mais diversos ângulos da realidade.
Na passada sexta-feira, em busca da paz merecida, Z. subiu à serra calcária e encontrou um mundo fervilhante, nas lagoas encontrou peixe, no terreno encontrou árvores e em Chão das Pias até encontrou um homem, seu semelhante. É certo que se tratava de um ser hodierno, atarracado, mesmo curvado pelo vento serrano, mas com mão sujas, do trabalho, acontecimento cada vez mais raro, num mundo em constante escalada de globalização.
Z. planeava iniciar a vaga de fundo em Chão das Pias, aquela que daria início à mudança, no carso profundo com o único homem que resistira num raio de centenas de quilómetros. Por algum sítio haveria de começar, a esperança.

Fuck me Fafina

Na parede lateral da festa do amor a inscrição tornava-se cada vez mais nítida, as coxas róseas de Fafina, não estavam envolvidas, como é hábito, por qualquer película protectora. A seu lado, a sua companheira Flora observava as velas brancas rompendo o arco do estuário como dedos curiosos perscrutando o ar salobro da tarde.
Flora não conseguia dissipar aquele som de grasnido de gaivota sobrevoando todo o seu corpo em contornos de volúpia e o som tornava-se mais claro, e a urgência mais urgente, sempre aquelas palavras zumbindo na cabeça como setas certeiras de encontro ao ventre: "Fuck me Fafina", era a única peça frágil de linguagem que lhe emanava dos lábios ávidos, com o aroma próximo dos sargaços.