terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Unanswered question (Ives)

tenho um poema
sobre o peito
a sua lâmina brilha
incisiva (o bico rompe)
com ela recorto a pele
de encontro ao tempo

faço uma ligeira pressão
floral
o dedo comanda
um fio atravessa
em laço
faço o rubro fio
deslizar da mão
(interrogo)
com que traço?

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

(...)

andamos desencontrados do mundo ele que vinha aqui pousar os olhos nas folhas das árvores à beira do lago andamos de cruzamento em cruzamento em busca de um semáforo que cintile no colo da noite e liberte o néctar rubi dos amantes dois minutos no café o tráfego vai-se escoando de encontro à pele o tecido do mar ondula e a barra entra mar adentro rio adentrando-se andamos desencontrados do vento da brisa que fustiga a cara no pousio da palavra a resposta que não vinha como a maré incontida

aqui estamos sem lugar definido braços e pernas indefesos com a montanha ao alcance dos olhos tecendo o pano cru de vida em vida em morte seguindo os passos enormes da espécie somos o homem e a sua sombra dúplice água e longo lodo revestimos o corpo arqueando as ondas cindindo o corpo ao corpo na redondez de ancas braços desenhados na pele e branda madrugada

e por vezes vem o cansaço o grande e fundo cansaço encimado de chumbo no céu e alguns pássaros virão de voo em voo fazer os ninhos na casa de papel e trarão o pequeno restolho abrigando as crias erguendo os bicos ao alto titubeando penugentos os versos primaveris

e quando do fundo da terra emergirem as raízes o odor de húmus do arco da linguagem que se arredonda na mão no girar dos dedos será por fim semeado o poema

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

BARROSO, 2011

Estou de borco, debruçado sobre as palavras, imerso na geografia das montanhas, recolhendo por entre a névoa os fragmentos de lugares, aparentemente, vestígios que deposito, bloco a bloco nestas páginas:

Tourém, Barroso, 2 de Setembro de 1990.

LIMITE

Pátria até que os meus pés
Se magoem no chão.
Até que o coração
Bata descompassado.
Até que eu não entenda
A voz livre do vento
E o silêncio tolhido
Das penedias.
Até que a minha sede
Não reconheça as fontes
Até que seja outro
E para outros
O aceno ancestral dos horizontes.

in Diário, Vol. XVI, Miguel Torga, 1995


TOURÉM

Os olhos do poeta
passavam pelos teus,
graníticas calotes,
onde a exfoliação
do tempo lançou
as raízes incertas na
áspera fundura da terra,
receptáculo em que
o castanheiro derramou
as derradeiras folhas.

O corpo, embora a fundura
pese na paisagem dura,
cavada na distância de
séculos, flutua no límpido
manto das grandes águas.

Paulo da Ponte, Barroso, 15 de Outubro de 2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

DE ROUPÃO EM CASA

Chego a casa,
(descalço os sapatos)
e não ligo o aquecimento
ligo em vez disso
as palavras

e espero que me aqueçam
olho-as até que atinjam
o rubor de flores:
acendo um jardim
completo em casa

e agora, tendo afastado
a geada dos recantos
do quarto, posso até
florir

terça-feira, 8 de novembro de 2011

KB

Olho, olho os ponteiros que se escoam do tempo
e os minutos dentro do braço do mesmo tempo
que abraçam e eu permaneço fazendo as tarefas
quotidianamente, abraçando em frente ao computador

o computador abraça-me e eu, fico somente só
entre a gente, que sai e entra daquelas janelas
digo bom dia, se a janela se abre discreta
sobre a superfície baça da existência do ecrã

e lá estamos reflectidos, movemos a cabeça e
movimentamos o cursor e perdemos toda a
informação dado o erro mal calculado por um bit

um escasso bit de informação foi o necessário
para em movimento rotacional antever o desastre
que se adivinhava mesmo antes de terminar o poema.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

MUSIC FOR A NEW SOCIETY (after Cale)

Saímos já sem que a roupa
formal
nos oprima a respiração,

os pequenos botões
rasgando o peito

saímos sem calendário
de regresso, por onde
os dias não pesem

e com os pés nus
erguemo-nos acima
para além do jugo
dos sapatos.

Um travo acre
o lume do tempo,
rebentando na língua
os cordões com que
a boca dirá.

domingo, 23 de outubro de 2011

(...)

domingo?
deflagram relâmpagos,
ao nível do tecto,
o cume da semana
atinge-se subindo,
subindo sempre,
até à casa do senhor.
Meia manhã de atoleiro,
o corpo entorpecido
da viagem empreendida
até à morada,
o tempo muda,
estamos expostos
à radiação:
salmo prévio,
e sardinhas ao almoço.

sábado, 22 de outubro de 2011

é-vida

Navegando por entre lixo electrónico,
e-mail e mais mensagem virtual,
emerge do fluxo residual aleatório
por vezes a fala da noite citadina
atravessando a janela do sótão
escuro, onde estou só eu sótão
e os pequenos ruídos da rua lá
em baixo onde cairei de seguida:

inanimado sem vida conhecida
sem fio de ligação à corrente.

Cadeia alimentar

Nunca tive mão audaz para a cozinha,
o poema sai-me morto e ensosso,
necessitado de tremoços,
não cumprindo a iguaria
os mínimos da montanha,
alcançam-me sempre na subida,
pelotão incluso,
e parece não haver saída,
panos sujos, azia,
demasiados molhos na poesia.

Disparam na noite os fusis,
e levanto-me bulímico,
comendo papéis, às três
menos um quarto
da madrugada.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

boletim metereológico

o céu enegrece anilado
é decretado o recolher obrigatório
para segurança dos peões,
nas varandas recolhem-se
os últimos estendais,
uivos caninos no ar,
nas repartições adensa-se
o vapor temporal,

o trânsito coagulou no poema,
algumas sílabas, inquietas,
abrigaram-se no último verso.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

esse ene esse

A barba crescida, (en)cerrada,
matizada de pequenos grãos
de gelo,
agora sais da repartição e repartes-te
entre o todo e a parte da vagabundagem
de um horário normalizado,
fazer por vezes vida de café nunca
fez (tanto) sentido,
repartes o todo pela parte,
com o carpinteiro perfeccionista,
o pai de família desfeito,
o economista despedido no centro
da crise,
a menina que come flores silvestres
de olhos enevoados
de grande criança,
entras na vida de todos
por dentro da escrita,
e agora desenhas cidades de vento
com ruas estreitas azuis,
e não te têm visto no local
de trabalho,
já lá não apareces há bastante
tempo,
e ninguém te procura.
Será possível que te tenham esquecido
na rua, entre duas esquinas?
As sirenes ecoam no poema,
mas a urgência não te pertence.
De nada serviria atafulhares
mais um pouco o serviço
nacional da solidão.

(11/10/2011)

domingo, 9 de outubro de 2011

Bruta a noite

Jangada de versos, a cama,
náufraga de dedos nodosos

espia os contornos, rostos
ou algumas sombras deus

existirá ele a esta hora da
madrugada, demónios eles

sangrando os outros, ofício
estranho de revelar os nós

nove de outono

levanto-me com o colar de vento
sobre a cama, os lençóis
prendendo os primeiros movimentos:
do dia virá, mais tarde, a previsível luz,

como um cordão atando as poucas roupas,
com que farás versos até ao meio-dia,
à tarde, desse domingo, mastigarás
folhas de ulmeiro retornando à toca

no fim do dia, quando os últimos
pássaros descerem aos abrigos
cobrirás os finos orifícios

com uma sopa quente
dois dedos de ternura
alguns fracos livros.

sábado, 8 de outubro de 2011

(...)

ágora

perto

palco

torso nu

égua

água

verbo

corpo cru

Vento e água

numa sinfonia de cordas limpas
traço a fundura da chuva,
vento e água, abrem lentos,
a ferida de todos os nomes

com os versos reduzidos
a vértebras, o corpo urge
como flor carnívora.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

TALLIS (Thomas)

dos esteios tirava a oca
sustentação do lenho

em moteto livre a boca
flutuava

ou talvez o vento lacustre
pudesse tanger a mínima
margem

da flutuação da voz
era a palavra pênsil