segunda-feira, 19 de março de 2012

FERRAGUDO (fragmento)

O Mar respira num sono profundo, a essa hora o azul carregado começa a abrir-se como se um lápis em traços abertos abrandasse o ritmo da grafia, a luz penetra e começam a revelar-se as primeiras esquinas do casario. A água plácida como espelho é sulcada pela quilha do bote, traçando duas linhas divergentes que se perdem à ré, onde se abre o véu da madrugada.
Os pingos frescos salpicam a cara enrugada de Zé Gato, o barco detem-se então na massa mole do lodo. Recolhidos os remos, as pernas mergulham, já fora da embarcação e penetram na massa cinzenta, uns bons três palmos abaixo da linha lodosa da maré. Na praça quadrangular já circulam as primeiras pessoas e uma ou duas bicicletas são o único nervosismo da manhã. Há que vender o magro balde do pescado o quanto antes. Na casa térrea rente à água havia já o aroma de pão fresco e o corria o leite morno directo ao estômago do Tóino, o mais novo do clã Gato. Mestre Zé Gato tinha uma companha pequena, eram quatro contando com ele, saíam ao cair do dia quando as mulheres aconchegavam as crias da maresia e os pontos imperceptíveis de estrelas lançavam a primeira rede de luz no firmamento. Tudo o mais era atravessar essa solidão das vagas à saída da barra, onde a noite por vezes vomitava borda fora e a sardinha alumiava o bojo dos cascos das embarcações, ora agrupadas ora dispersas em cardume desfeito. Para chegar à aldeia o autocarro fumegante atravessava a ponte e contornava as fábricas de conservas, massas imponentes de paredes caiadas e janelas esguias. O peixe chegava e flamejava, num movimento circular por entre as mãos das mulheres, vestidas de branco que lhes arrancavam a cabeça e as vísceras antes de deitá-las numa cama metálica e da expedição para todos os cantos da terra. A economia florescia e as chaminés verticais ajustavam-se ao rebordo das margens, num rendilhado de tijolos rubros, culminando em ninhos de cegonha.
Ferragudo era um pequeno porto dento do porto, quase um farol de terra emersa onde o vento e o mar chegavam antes mesmo da própria maré deflagrar entre as pedras do molhe. Na vertical da enseada, ladeando o salva-vidas, erguia-se a igreja de Nª Sr.ª da Conceição, virada ao oceano como se levasse a padroeira no convés da terra. Um navio assim exigia grandes aprumos de marinhagem. No dia em que Zé Gato previu o nascimento do Tóino, antes de sair da enseada, o mar repicava nos degraus do cais como fervura de leite. O gasolino rasgava a pequena ondulação deixando à popa um rasto de espuma inusitado, como se de um cordão umbilical se tratasse. Foi assim que o Mestre Zé soube do eminente nascimento do quarto filho. A prole de pescador era variável, e todos eram acolhidos pelos braços do mar, comendo à boca das ondas. Tudo parecia talhado à medida dos frutos da terra e do mar e os poemas cresciam no fundo do rio e acidentalmente emergiam do leito largo, colando-se aos cascos de barcos de pesca e navios mercantes que aportavam a poente, no estuário largo, levando nos seus porões quantidades variáveis de sal, sol, estrelas do mar, figos secos e amêndoas para adornar mesas requintadas. (...)
Fevereiro 2012

sexta-feira, 9 de março de 2012

Sem título

Rasgo a polpa carnuda dos dedos
a flauta acende uma chama
na vermelha amplitude da boca
soprando os dias como pequenos
búzios eu sou as pedras banhadas
a areia paralela às frágeis linhas
de água irrompendo nas janelas

as casas tinham as portas subidas
um degrau apenas essa sílaba
limpa de poial caiado

as vidraças rachavam à passagem
dos insectos vagamente vaga-lumes
e a luz túmida acendia-se no túnel
dos seus ventres vagarosos