terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O homem do machado regressa à última morada

O homem do machado regressara.
Quando cheguei a casa estranhei a azáfama ao cimo da escada. Um grupo de operários andava a colocar uma placa com a seguinte inscrição: "aqui jaz o homem do machado, primeiro ser malévolo do sec. XXI. Felizmente alguém conseguiu colocar-lhe uma rolha na cloaca, protegendo os utentes deste prédio de maiores males".
Fiquei ali, diante da placa polida e da lâmina cortante do vizinho, agora reduzida à baça memória de um epitáfio.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Manuel Moreira


Penetrei na terra rossa, mãos e pés envoltos na espessura da memória. Primeiro, à superfície, sentia o ar envolvente da montanha, o aroma de alecrins subir pelas mãos até ser inalado, a vertigem da paisagem a entrar nos poros. Já na gruta, a humidade circulando pelas pequenas cavidades, vértebras do tempo antigo. É uma descida ao poço dos homens, aquela que se empreende com o frio no rosto e uma pequena candeia iluminando a fronte. Manuel Moreira continuava na entrada da gruta, guardião do tempo com o vento fixado no rosto, as mãos lentas, enegrecidas pela escassez do trigo e pelo balido das cabras serranas, apascentando baldios. O corpo curvado sobre a haste fina de madeira tornara-se instável, puxando o corpo frágil a curvar-se, lanterna acesa rente ao chão enluarado, desenhos de espuma nos cabelos.

Manuel sempre aí tinha vivido no ventre escuro da serra, desde que penetrara a mina da Bezerra, de onde retirara o minério que alumiaria almas perdidas. Da Bezerra à Corredoira serpenteava a locomotiva ululante na falda nascente de Candeeiros, os fios desenhados no relevo começariam a transportar uma nova luz.
Dos contrafortes de Chão das Pias avistam-se os sulcos do Lena e a imponência do castelo de Porto de Mós, sentado e pensativo sobre o povoado. Era toda uma geografia que se desvendava num texto breve, como este.

*

Tenho um nebulizador, Manuel Moreira, mantenho-o sobre a mesa de cabeceira para memória futura, ao lado do copo com água, candeeiro de pendentes lacrimejantes, papel de rascunho, estojo de canetas. Neste local, inicia-se uma revolução a cada texto hediondo, a cada espera sonolenta. Ritmo e sombra são o propósito.
É daqui que parto todas as noites para longe, muito longe daqui, para longe de mim, e à medida que me afasto, aproximo-me com um arco de luz de orelha a orelha, sobre a voz ciciante. Neste local repouso as palavras agudas e arrumo as linhas por cada espaço livre, ordenadamente, tudo o resto aparece como gelatina desarrumada expandindo a luz em gorgolejos. Enche-se o espaço, aquoso, de uma tinta anilada, a escrita que inicia a sua dança sensual entre duas linhas.
Reparem, o movimento cíclico do aparo entre os dedos, desenhando rebordos negros de fundura. A cabeceira, local onde encosto a arcaria do peito, treme e ferve à medida que o texto avança, entretecido por dedos, a trama é densa e urgente; o dia claro, sucedendo-se a si próprio.
Manuel Moreira está presente mas não vive, apenas jaz entre quatro paredes cartonadas, numa indústria decadente e baça de contornos. Dir-se-ia que se trata da dissipação da linguagem, mas os ícones prevalecem ante a nudez das mãos, emanando dos movimentos fulgentes.


Serra dos Candeeiros, 3 de Novembro de 2012

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Zéfirofolio no carso profundo

Zéfirofolio tem andado afastado da grande política. Há quem diga que anda a preparar-se para a alternância democrática ou lá o que isso quer dizer. Anda a preparar uma vaga de fundo que que nos passe bem acima da cabeça. Mas já ninguém acredita, tanto foi o tempo da ausência que motivou no povo uma forte indiferença. Anda tudo indiferente e com vontade de cagar, com uma forte vontade de cagar nisso nos mais diversos ângulos da realidade.
Na passada sexta-feira, em busca da paz merecida, Z. subiu à serra calcária e encontrou um mundo fervilhante, nas lagoas encontrou peixe, no terreno encontrou árvores e em Chão das Pias até encontrou um homem, seu semelhante. É certo que se tratava de um ser hodierno, atarracado, mesmo curvado pelo vento serrano, mas com mão sujas, do trabalho, acontecimento cada vez mais raro, num mundo em constante escalada de globalização.
Z. planeava iniciar a vaga de fundo em Chão das Pias, aquela que daria início à mudança, no carso profundo com o único homem que resistira num raio de centenas de quilómetros. Por algum sítio haveria de começar, a esperança.

Fuck me Fafina

Na parede lateral da festa do amor a inscrição tornava-se cada vez mais nítida, as coxas róseas de Fafina, não estavam envolvidas, como é hábito, por qualquer película protectora. A seu lado, a sua companheira Flora observava as velas brancas rompendo o arco do estuário como dedos curiosos perscrutando o ar salobro da tarde.
Flora não conseguia dissipar aquele som de grasnido de gaivota sobrevoando todo o seu corpo em contornos de volúpia e o som tornava-se mais claro, e a urgência mais urgente, sempre aquelas palavras zumbindo na cabeça como setas certeiras de encontro ao ventre: "Fuck me Fafina", era a única peça frágil de linguagem que lhe emanava dos lábios ávidos, com o aroma próximo dos sargaços.

sábado, 13 de outubro de 2012

Poesia insuflável - Nota introdutória, apresentações e encomendas

 
 
A palavra que, da boca do poeta, nasceu para um círculo de música, envolta toda ela em pudor, ingressa depois nas relações diárias e é submetida ao comércio de todos os homens.

In Na Senda da Poesia, Ruy Belo


Poesia insuflável não é só um tecto, é o abrigo completo das intempéries da vida quotidiana. É a tenda com todos os seus dispositivos: mastros, espias, estacas, tecto e sobre-tecto, só lhe falta um chão. A terra entra abundantemente na nossa vida, a lama e seus derivados. Contra isso temos a poesia insuflável.
Sopra-se por um lado, nada acontece, então insufla-se até perdermos o fôlego, até mesmo rasgar o ar.
Contra todas as crises de valores (de ontem, de hoje), poesia insuflável é um valor certo, basta um pouco de algodão e todas as cicatrizes do ar se transformam em nuvens, e depois em espuma doce.
Poesia insuflável é feita de máquinas sussurrantes, pequenos afectos, atendedores nocturnos e janelas sobre o leito.
A luz parece manter-se acesa, mas aqui é toda uma bolha de sensações prodigiosas, até que o leitor rebente essa bolha e consiga caminhar sobre o firmamento.
 
Paulo da Ponte, Julho de 2012

Após a apresentação feita em Portimão no dia 18 de Agosto e no passado dia 5 de Outubro nas Caldas da Rainha, segue-se uma segunda apresentação nesta cidade, no próximo dia 31 de Outubro, pelas 20:00h na Casa Antero. Seguem-se apresentações em Leiria, Coimbra e Porto a agendar brevemente.
Aceitam-se pedidos e encomendas do livro para o e-mail: pauljcorreia.arq@gmail.com. Será feito o envio por correio, acrescendo os portes de correio ao preço de capa.

 

Próxima apresentação do meu livro "Poesia insuflável - cinquenta bóias e uma pausa na insuflação" dia 31 de Outubro, 20:00h, Casa Antero, nas Caldas da Rainha

Próxima apresentação do meu livro "Poesia insuflável - cinquenta bóias e uma pausa na insuflação" dia 31 de Outubro, 20:00h, Casa Antero, nas Caldas da Rainha.
Encomendas e venda através da Internet, e-mail: pauljcorreia.arq@gmail.com

Envio por correio, portes acrescidos.

sábado, 28 de julho de 2012

TEXTO LIVRE COMO BASE DE UMA IMPROVISAÇÃO ANGULAR (a usar moderadamente na apresentação de “Poesia insuflável”)

Sobre a minha mesa de trabalho reside uma laranja de gomos tristes. Foi envelhecendo gomo os papéis. O fôlego laranja murchou: como a laranjeira. Ouço os artefactos movidos a ar, nobre arte de insuflar, de resistir apesar das altas pressões e nos abrigarmos de disparates que povoam todo... o espaço aéreo circundante. Tão comuns os disparates em pleno século vinte e um português, dos espartilhos ao exercício da linguagem à linguagem desoladora da demagogia, parvos e asnos a voar.
Assim, este equívoco poético (perdure?) pode sobreviver debaixo de qualquer verborreia retórica, é robusto e impermeável a qualquer tipo de merda política.
Aceitam-se alternativas a este pedaço textual.*

* escrito numa noite distante do ano de 2014 d.c.
 
 

segunda-feira, 19 de março de 2012

FERRAGUDO (fragmento)

O Mar respira num sono profundo, a essa hora o azul carregado começa a abrir-se como se um lápis em traços abertos abrandasse o ritmo da grafia, a luz penetra e começam a revelar-se as primeiras esquinas do casario. A água plácida como espelho é sulcada pela quilha do bote, traçando duas linhas divergentes que se perdem à ré, onde se abre o véu da madrugada.
Os pingos frescos salpicam a cara enrugada de Zé Gato, o barco detem-se então na massa mole do lodo. Recolhidos os remos, as pernas mergulham, já fora da embarcação e penetram na massa cinzenta, uns bons três palmos abaixo da linha lodosa da maré. Na praça quadrangular já circulam as primeiras pessoas e uma ou duas bicicletas são o único nervosismo da manhã. Há que vender o magro balde do pescado o quanto antes. Na casa térrea rente à água havia já o aroma de pão fresco e o corria o leite morno directo ao estômago do Tóino, o mais novo do clã Gato. Mestre Zé Gato tinha uma companha pequena, eram quatro contando com ele, saíam ao cair do dia quando as mulheres aconchegavam as crias da maresia e os pontos imperceptíveis de estrelas lançavam a primeira rede de luz no firmamento. Tudo o mais era atravessar essa solidão das vagas à saída da barra, onde a noite por vezes vomitava borda fora e a sardinha alumiava o bojo dos cascos das embarcações, ora agrupadas ora dispersas em cardume desfeito. Para chegar à aldeia o autocarro fumegante atravessava a ponte e contornava as fábricas de conservas, massas imponentes de paredes caiadas e janelas esguias. O peixe chegava e flamejava, num movimento circular por entre as mãos das mulheres, vestidas de branco que lhes arrancavam a cabeça e as vísceras antes de deitá-las numa cama metálica e da expedição para todos os cantos da terra. A economia florescia e as chaminés verticais ajustavam-se ao rebordo das margens, num rendilhado de tijolos rubros, culminando em ninhos de cegonha.
Ferragudo era um pequeno porto dento do porto, quase um farol de terra emersa onde o vento e o mar chegavam antes mesmo da própria maré deflagrar entre as pedras do molhe. Na vertical da enseada, ladeando o salva-vidas, erguia-se a igreja de Nª Sr.ª da Conceição, virada ao oceano como se levasse a padroeira no convés da terra. Um navio assim exigia grandes aprumos de marinhagem. No dia em que Zé Gato previu o nascimento do Tóino, antes de sair da enseada, o mar repicava nos degraus do cais como fervura de leite. O gasolino rasgava a pequena ondulação deixando à popa um rasto de espuma inusitado, como se de um cordão umbilical se tratasse. Foi assim que o Mestre Zé soube do eminente nascimento do quarto filho. A prole de pescador era variável, e todos eram acolhidos pelos braços do mar, comendo à boca das ondas. Tudo parecia talhado à medida dos frutos da terra e do mar e os poemas cresciam no fundo do rio e acidentalmente emergiam do leito largo, colando-se aos cascos de barcos de pesca e navios mercantes que aportavam a poente, no estuário largo, levando nos seus porões quantidades variáveis de sal, sol, estrelas do mar, figos secos e amêndoas para adornar mesas requintadas. (...)
Fevereiro 2012

sexta-feira, 9 de março de 2012

Sem título

Rasgo a polpa carnuda dos dedos
a flauta acende uma chama
na vermelha amplitude da boca
soprando os dias como pequenos
búzios eu sou as pedras banhadas
a areia paralela às frágeis linhas
de água irrompendo nas janelas

as casas tinham as portas subidas
um degrau apenas essa sílaba
limpa de poial caiado

as vidraças rachavam à passagem
dos insectos vagamente vaga-lumes
e a luz túmida acendia-se no túnel
dos seus ventres vagarosos

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

NECROLOGIA

Zéfirofolio (1972-2012)

De entre as notícias truncadas retirara-se o essencial. O sinal terrestre acabara de ser desligado e isso fora fatal a Zéfirofolio, indivíduo do sexo masculino (ainda activo), aparentando uma idade aproximada de quarenta anos, encontrado sentado no sofá de sua casa frente a um monitor apagado, hoje pelas 8:47h.

Alguns vestígios recolhidos no local indiciam que o indivíduo não morreu de morte natural. Exteriormente o corpo intacto, não apresentava sinais de violência exceptuando uma erecção persistente que, segundo os peritos médicos, mesmo após 36 horas do presumível óbito continuava activa.Um ligeiro aroma a flores inundava a casa.Ao ser transportado do local estranhava-se a leveza do corpo, embora externamente intacto, nada parecia existir dentro dele, um ser limpo e leve como pena.Esta reportagem foi concluída à porta da morgue, onde o jornalista, exange da vigília, comia uma bifana, enquanto o indivíduo era pousado no chão, deitado na posição sentada, ao lado de tantos outros corpos vazios da crosta terrestre.


10-02-2012

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

HAVIA UM HOMEM

havia um homem
que comia grãos de pólen
tal era a sua luz interior
havia um homem que subia
bem alto e beijava o
plexo das telhas
amplexamente
havia grandes casas
com luzes acesas
e mãos disparando revólveres
ampliando o estalido das bocas
na escadaria
fazendo bramir a estrutura firme
dos prédios
a pólvora fazia estremecer
o homem das grossas mãos
dos grãos de pólen ingeridos
como se fossem ampolas
viajantes
era um homem escrevia em
cadernos cor de rosa
que julgava as letras
serem grandes incêndios
e a aurora uma coisa boreal
formigando nos dedos
uma cabeça assim voa
no redemoinho das casas
um homem que beija paredes
até que lábios e cal esmaeçam
um homem labial e isento
de qualquer nódulo
neste momento nódulo
frente a frente numa casa
acontecia a ciência de um beijo
com toda a alquímica magia
de lábios
as mãos apoiadas nos tampos
instáveis
o torso de cavalos
trotando no peito
havia um homem
havia uma mulher
comendo grãos de pólen
a uma mesa

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Zéfirofolio apresenta-se

Zéfirofolio acordara com uma sensação estranha naquele dia. No centro da cama, completamente nu, o sexo erecto dominava. Ele sabia que aquele dia não ia durar para sempre, que as horas iriam resvalar em cacho de encontro à penumbra e inevitavelmente o tesão terminaria.

Zéfirofolio enquanto isso acontecia, era um ser feliz. Olhando a aresta interior do quarto, não conseguia distinguir as ligeiras irregularidades do reboco que definiam a separação dos espaços: dentro/fora, fora/dentro, conteúdo/continente. Era para ele um dia novo, do novo ano, disso não haviam dúvidas, e se elas porventura existissem, o sexo ali estava vertical e limpo a marcar toda a certeza do momento. A estranheza que sentia devia-se em grande medida àquela posição assumida, no centro da cama, cuja precisão geométrica o assombrava. Já o sexo altivo não lhe causava qualquer estranheza.

A pouco e pouco ia mexendo os braços e observava a oscilação de mastro que assumia o mastro. Qualquer vela se sentiria confortável naquele suporte prodigioso, preparada para qualquer navegação. Zéfirofolio considerava-se ele próprio um dos primeiros navegantes, com a coluna vertebral bem assente no mar acolchoado. As suas costas sulcavam com prazer as macias águas do novo ano, que lhe entrava ainda intacto pelas narinas.


P. Ponte(1-01-2012)