sábado, 3 de agosto de 2013

TRÊS MULHERES E UM HOMEM (novela ou conto em pequenos fragmentos)

[Fragmento 1]
De errância se trata, este ofício de pousar a caneta sobre o papel e vaguear, como se a liberdade não pudesse cessar, um dia, por detrás da servidão.
Neste fragmento inicial era suposto desenhar o perfil psicológico dos quatro intervenientes na pequena novela, ideia estapafúrdia, logo abandonada, a que se juntaram os restantes fragmentos, todos devidamente desorganizados, em forma aleatória, a que os números darão a errónea sensação de ordem, vasos comunicantes de escrita, para que, ultrapassando as fronteiras convencionais, se aproximem da complexidade real dos homens e das mulheres de hoje, de sempre.

[Fragmento 2]
1.º episódio lunar
O calor era intenso, o sul latejava nas têmporas nocturnas, as gaivotas sobrevoavam as casas empoleiradas nas árvores. A cidade enchia-se, no estio, de vestidos debruados a tucanos e palmeiras.
Os veículos bordejavam os passeios, deambulavam com os motores acesos, procurando na via o mínimo lugar, era uma espera, quase um átrio de sono ao nível da rua, o mar continuava banhando os bancos de areia, um pouco mais longe dali; a cidade refugiara-se no oco da onda lunar.
2.º episódio lunar
Era uma cidade do sul que escutava ainda a voz longínqua de mouras encantadas, cativas nos poços da memória.
Era uma casa de ramos altos onde as mulheres se encontravam, lunares, absolutas. O homem abria as veias de Baco e o néctar escorria-lhe dentro das feridas, havia o pão inicial sobre a mesa, uma liturgia de sangue e pão e uma das mulheres desnudava as coxas, o trigo germinava ao nível do chão envolvendo o tronco forte das vozes; era uma noite luminosa, os risos atravessavam o ar e pousavam sobre a mesa de madeira, nos panos de linho.
Depois, uma das mulheres iniciou o rito sacrificial, vertendo o néctar sobre o vestido branco, mascando pétalas, erguia o corpo numa dança pélvica, este jardim túmido penetrava a boca dos convidados, o rumor líquido saciava as gargantas sequiosas. As línguas indicavam os poços em torno da casa arbórea. Formava-se uma roda e juntavam-se outros homens e mulheres, rodando sempre em círculos sucessivos, apertando as mãos e movendo os corpos ao sabor dos dias e das noites em que duravam os ritos.
3.º episódio lunar
Agora, o homem rompia com os dedos a erva, e longe dele as mulheres adensavam o mistério dos seus cabelos nos reflexos da noite. Havia um mar a separá-los, havia sempre homem, paredes de água, mulher, um oceano de lonjuras, de encontros e desencontros, de palavras trocadas, guardadas dentro de um cofre.

[Fragmento 3]
A tenda assente sobre as ervas, as folhas rente ao peito, arrastadas pelas asas dos carriços, é meia-noite, fixo-me no buraco alvo da lua.
As ramificações radiculares desenhadas à porta convidam a palavra: terra.
As estacas sustentam as espias, fundem-se ante a fragilidade dos braços.
Agosto ata este homem às mulheres que lhe aconteceram, mas não é um nó, trata-se de um jogo leve, quase um poema, aquilo que os une.
É isto a arte? Este acontecimento rude de corpos trigueiros, em que não existe moldura a limitar os movimentos, a cercear os seus gestos largos?

[Fragmento 4]
A disciplina astral obrigava o homem a ficar acordado toda a noite, mãos colocadas sobre o peito, enquanto grandes aves grasnavam sobre a sua cabeça. O grasnido aflito desses pássaros reverberava em todo o pavimento, ecoava na arcaria do tórax.
Chovia agora, uma água vinda do centro da noite para o relembrar da vigília, um som crepitante, de floresta seca e do fogo que se formava, por vezes, por excesso de ramos, devido ao aviso tardio dos pássaros vigilantes.
 Enquanto isso as três mulheres enrolavam-se nos seus lençóis de linho, com seus companheiros, e ao primeiro raio de luz sentavam-se sobre os seus ventres ígneos, enchendo-se de flores nos cabelos.
Despontava das bocas das mulheres a inocência dos filhos, tapados agora com grossos panos. Quando se levantavam, punham a correr a água dos riachos e lavavam os olhos e pele, em seguida envolvendo o corpo com gaze, tapando as feridas mais profundas, acreditando que os véus que as cobriam tudo podiam curar. Assim foi, durante longos anos.  

[Fragmento 5]
Um dia o homem tocou o elemento fogo com as próprias mãos, e numa das mulheres, a mais indefesa, formou-se uma língua de fogo que lhe devorou o interior. Ficou-lhe para sempre aquela labareda interna que lhe aflorava à boca em momentos de profunda solidão, como amarra desatada.
O homem sofreu um momentâneo sopro ígneo e o vento não lhe coube nas mãos, nesse dia aziago. A arte de dominar o fogo era para eles (homem e mulheres) uma constante aprendizagem, um livro de palavra nenhuma.

[Fragmento 6]
O homem amarrava as suas coisas, abandonava a casa alta das três mulheres; sem fazer barulho deixando sobre a mesa um pequeno bilhete de gomos de oiro e deslizou, por fim, em silêncio.
Na cama, as três mulheres, aconchegadas no torvelinho de cabelos, davam as mãos, enquanto um pequeno sol nascia-lhes no lóbulo das orelhas.
Lá fora, os sons começavam, mais uma vez, eram os filhos e esposos que chegavam, invisíveis, subindo as escadas aos tropeções, dando pequenas gargalhadas de ternura.

[Fragmento 7]
Uma das mulheres, vinda da alta montanha, trazia suspensos nas orelhas dois medronhos rubros, como lábios.
Descera ao longo da abrupta vertente, tacteando os troncos da floresta, ferindo os dedos nas cascas e ramos pontiagudos.
Mais abaixo, na base da vertente, onde o chão perdia a vertigem, iniciava um fogo, fervia os medronhos e derramava o néctar sobre as feridas dos dedos. Os bichos eram chamados de dentro das tocas e dançavam em volta da mulher, uma dança panejada de vento.
As fóias giravam no ar e a doce mulher foi sendo empurrada para o litoral, à medida que os rios serranos engrossavam e as jangadas deslizavam em leitos cada vez mais largos até ao mar.

[Epílogo]
Hoje, passados vários anos, na foz continua um rio, que se alargou de braços abertos, e ficou sempre um perfume de três mulheres nesse leito alargado, que se confunde com os laranjais, e a que os homens, agora mais numerosos, chamam de arade, o rio de um homem é sempre um vaso de água pequeno de mais.

(versão revista e ampliada)
Julho de 2013

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