Dei por mim naquela gare. Domingo quase
extinto. Abrigado sob a pala da estação rodoviária. Um pouco mais acima, de
pernas magras e calças largas a rapariga subia e descia a rampa, praguejando,
braços cruzados sobre o casaco caqui, ensopado, os braços molhados e frios. Um
cigarro, sobe mais um pouco e senta-se na sala de espera, sob a luz
intermitente do néon. Deixa cair os sacos de plástico no banco, com estrondo.
Retira o telefone móvel do bolso, olha-o fixamente, puxa da navalha e com a
lâmina desliza sobre o visor, agora que a luz se fixou, consigo ver-lhe melhor
as maçãs do rosto salientes, ossudas, os olhos fundos. Volta a praguejar,
agita-se, dirige-se até uma máquina azul e introduz uma moeda na ranhura, bebe
o café quente, cambaleia, pragueja, desferindo pontapés na estrutura dos bancos
corridos, dobrando a biqueira dos sapatos. As calças parecem demasiado largas,
dançam-lhe por cima das pernas, uma dança estranha, quase lúgubre. Acima do
rosto anguloso, sobe a tecelagem do cabelo alaranjado, rematando numa bola
quase perfeita, ajeita-o, crava-lhe um gancho, depois outro. É tarde e a
muralha de água persiste lá fora, não permite que as feras saiam e invadam a
noite. Na parede alta da gare, quase nua, um relógio marca zero e vinte. Na
sala defronte dormem uns dez autocarros, a avaliar pelos rodados deitados no
chão. Estendo um casaco no pavimento, junto do saco verde e deito-me, com o
abdómen virado para o lancil, para proteger as vísceras dos animais mais
vorazes. A rapariga, essa, acaba de sair deste texto.
20-04-2014
Paulo da Ponte
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